Nega, tu era minha inspiração. Não pense que não. Era com você que eu falava sobre os benefícios de se dançar salsa e você queria discutir política. Eu chegava em casa e escrevia até amanhecer. Nem parecia que a gente tinha só vinte e poucos. Teve também aquela noite que sentamos no porta malas do carro e ficamos tomando um uísque ruim. Depois eu escrevi 20 páginas. Não reescrevi jamais. Naquele dia tu queria escrever uma carta para o presidente, falar das merdas que estavam acontecendo, dos estudantes sem emprego. Será que você ainda é assim? Desculpa se eu te fiz, várias vezes, parar de falar sobre assuntos sérios pra cantar “sexual healing” pela janela do carro em alta velocidade. Era bobo, mas era minha inspiração. Você não imagina como você ficava musa com os cabelos embaraçados de vento. Como era errado e era bom. Você bebia e dizia ‘espera um minutinho, eu só preciso descalçar os meus sapatos pra relaxar’ e acabávamos correndo descalços por um parque qualquer. Nega, te peço: volta. Preciso terminar de escrever o livro da minha vida e tu és a personagem principal, sentada num banco qualquer, com um vestido florido, um charuto e um livro. Volta, pra fazer minhas ideias dançarem como duendes num gramado (desses que você queria me convencer que existiam). Volta, pra eu tirar minha camisa e colocar um calção florido pra você zoar com a minha cara, em ocasiões assim eu escrevo muito sobre mim. Volta, nega.